sexta-feira, maio 22, 2009

Em busca de viabilização*

foto: espetáculo de João Saldanha

A necessidade de uma política cultural fundamentada e transparente é consenso entre os principais nomes da dança que acreditam na democratização do acesso ao patrocínio, na descentralização do financiamento e na difusão dos produtos culturais como uma importante medida para a evolução e o reconhecimento da arte no Brasil. Mas a deficiência da política de investimento vigente não é identificada como a única vilã dessa história. Outros pontos integram o conjunto de preocupações dos profissionais da dança, entre eles o desequilíbrio na distribuição da informação, a falta de uma política pública efetiva, o investimento concentrado em grandes nomes, a dificuldade de entendimento sobre a real função social da arte e a desvalorização da arte nacional no Brasil, em oposição ao reconhecimento internacional.

Segundo a Pesquisa de Informações Básicas Municipais - Gestão Pública 2005, promovida pelo IBGE, a dança está entre as principais atividades artísticas desenvolvidas no Brasil. Na prática, os grupos de dança estão presentes em 53% dos municípios, ficando atrás apenas dos grupos musicais (58%), e à frente dos corais (48%). Esses dados nos levam a uma pergunta inevitável: se tantas pessoas de diversas regiões do País se organizam para dançar, por que são tão poucas as iniciativas e os festivais ligados à dança?

Para o coreógrafo João Saldanha, o investimento, seja público ou privado, em artes cênicas – e aí leia-se capacitação, produção e circulação – é deficiente, muito aquém do necessário, e está associado a uma postura equivocada de política cultural. “Não há uma política para as artes cênicas, que acabam no fundo do baú na ordem de prioridades. Mas isso é resultado de uma questão cultural. A história nos mostra que os políticos não costumam dar a devida atenção à cultura, confundindo-a com entretenimento. O Brasil investe centenas de milhões em campanhas políticas, mas não investe na consolidação de sua cultura. O caso do Cirque du Soleil é sintomático e explicita a subordinação que sofremos de outras culturas. Um evento internacional desse porte abafa o que está sendo feito por aqui e ainda utiliza o dinheiro público. A cada ano multiplica-se o número de artistas brasileiros que fazem um trabalho de qualidade, de investigação em pesquisa e realização; produções, às vezes muito simples, mas com um alto poder de transformação. E é essa a cultura que não tem verba. No Brasil, quem recebe patrocínio está ligado à televisão. E dinheiro é o que viabiliza o bem cultural, não adianta só ser bem intencionado”, elocubra Saldanha.

O resultado direto desse cenário pernicioso é o aumento do número de pessoas sem acesso ao bem cultural por falta de oportunidade, e não de interesse. A experiência vivida por João Saldanha com o projeto Danças de Porão, em 2002, mostra que existe um público ávido por cultura, circunscrito às opções que lhe são oferecidas. A iniciativa gratuita aconteceu na época do Natal, no Paço Imperial, no Rio de Janeiro. Trechos de um livro da Fayga Ostrower eram lidos para uma platéia de 60 pessoas. Divulgado boca-a-boca, o espetáculo chegou a reunir 3 mil pessoas. “Ao garantir a gratuidade, conseguimos atingir um público acima do esperado. E não estou falando da classe média. O expectador desse projeto vinha das classes D e E; pessoas humildes, com uma capacidade de percepção incrível. Essa experiência constata que a democratização depende da intenção. O empresariado precisa perceber que existem bens patrimoniais e culturais que atingem pequenas camadas, mas que no final estamos tratando de um somatório. Julgar a qualidade pela quantidade não é a atitude mais eficiente”, diz o coreógrafo.

O fato é que mesmo com tanto interesse pela dança o Brasil só possui cinco festivais profissionais, sendo dois no Sudeste – o Festival Panorama de Dança, no Rio de Janeiro, e o FID - Fórum Internacional de Dança, em Minas Gerais; dois no Nordeste – a Bienal de Dança do Ceará e o Festival de Dança do Recife; e um no Centro-Oeste – o Festival Internacional Nova Dança, em Brasília. Para viabilizar suas existências e fortalecer suas atuações, os cinco festivais uniram-se em 2005, em uma parceria que possibilitaria a criação de um circuito de dança para buscar patrocínio e conquistar o reconhecimento de entidades e empresas como a Funarte e a Petrobras. “O artista tem dificuldade para financiar e fazer circular seu trabalho, ficando restrito a algumas cenas do Brasil e a uma produção fragmentada. Mesmo assim, o ambiente é mais favorável hoje do que há alguns anos. A dança, seguindo o rumo da cultura mundial, mudou muito. Para começar, o mundo passou a contar com meios de comunicação até então inexistentes, que permitiram um maior acesso à produção artística de todos os recantos; surgiu uma consciência da necessidade de políticas públicas para cultura – ainda que elas estejam longe do ideal; e o setor ganhou em termos de profissionalização. Hoje, temos até sites que tratam especificamente de dança contemporânea, recebendo 12 mil visitas por mês”, conta a diretora e curadora do Festival Panorama de Dança, Nayse Lopez. Para ela, o marco desse processo de crescimento da dança nacional foi a Bienal de Dança de Lyon, que aconteceu na França em 1996, tendo como tema o Brasil. “Esse foi o primeiro grande evento que reuniu dezenas de profissionais da dança brasileira. Ali teve início uma maior integração entre eles, o que acarretou a criação de redes de contato e, consequentemente, o fortalecimento do setor”, diz Nayse.

Há quinze anos em atuação, o Festival Panorama de Dança é uma espécie de manifesto de resistência em um mercado incipiente. Resultado de um trabalho ininterrupto e perseverante, ao longo dos anos, o Festival fundado pela coreógrafa Lia Rodrigues conquistou notoriedade internacional e espaço na agenda de festivais nacionais, destacando-se como uma referência para a produção, promoção e reflexão sobre a dança. Com isso, passou a congregar artistas nacionais e estrangeiros, permitindo a integração dos profissionais e o intercâmbio de informações vitais para o desenvolvimento da arte. Para ampliar seu raio de ação, o Panorama tem como diretriz a venda de ingressos a baixo custo, o que provoca o interesse tanto de um público cativo quanto de novos apreciadores da dança. O somatório das ações dirigidas do evento é a inclusão social e democratização do acesso à cultura.

Nayse Lopez reitera a existência de um público crescente, em busca de informações sobre dança. “Gente que só tinha acesso ao clássico passou a conhecer e apreciar a arte contemporânea, percebendo a dança como um espaço para a produção do pensamento e o corpo como um terreno real para o desenvolvimento da arte. Festivais como o Panorama e o FID funcionam como vitrines para a dança comprometida com o desenvolvimento da linguagem. Entretanto, ainda não há uma real democratização da dança”, conclui.
Nesse sentido, a cidade de Votorantim, no interior de São Paulo, é uma exceção. Desde 2001, o projeto Quadra Pessoas e Idéias age discretamente na consolidação de um público para a dança, partindo do conceito de “tecnologia do convívio”, que significa reflexão e vivência da dança. A iniciativa promove a arte contemporânea entre jovens, visando a capacitação de mediadores que passam a integrar a equipe de profissionais do projeto. “Atuamos em consonância com os direitos universais para o desenvolvimento das pessoas a partir de elementos como a formação continuada, dinâmicas de convívio e a elaboração de estratégias para a difusão de produtos artísticos. Em cinco anos de trabalho, entramos em contato com aproximadamente 285 mil pessoas/espectadores”, conta o idealizador do projeto, Marcelo Proença.

Ainda assim, vale lembrar que a cidade de Votorantim fica em São Paulo, Estado que, segundo a pesquisa do IBGE (2006) sobre a distribuição de investimento entre os Estados brasileiros, detém as cidades que mais investem em cultura. Cerca de 37,6% do total de R$ 1,27 bilhão dos gastos realizados pelos municípios brasileiros em cultura, é investido em São Paulo.

E quando o assunto é a dança fora do circuito Rio-São Paulo, a situação mostra-se preocupante. Que o diga João Saldanha. Recém-chegado de uma turnê pelo Nordeste, ele conta que tanto os teatros quanto o público estão em processo de deterioração. “Há oito anos que eu não fazia uma turnê pela região e o que vi me deixou assombrado. Os espaços estão cada vez mais degradados e não têm equipamento necessário nem para receber o público. Teatros lindíssimos que datam do início do século 20, ocupados por morcegos e ratos. E o público, que há oito anos parecia ascender, não consegue nem pagar um ingresso de R$ 5”, conta o coreógrafo.

*matéria publicada no Boletim da Democratização Cultural, em julho de 2007

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