sexta-feira, maio 22, 2009

sotaque caboclo sampleado*


À beira do cais convivem frutas típicas, poções mágicas, ervas que prometem solução, peixes frescos, sotaques, roupas, artesanatos, cores vibrantes e cheiros capazes de inundar a alma. A descrição que versa sobre o Mercado Ver-o-Peso (PA) também poderia definir a música produzida no Norte do País. Intensa, criativa e muita rica, a música da região compõe um patrimônio imaterial que vem sendo revisitado e revigorado pelas novas gerações. Carimbó, boi-bumbá, tecnobrega, samba de cacete, marabaixo e guitarrada são alguns dos gêneros regionais que receberam uma roupagem própria ao século 21, configurando as diversas influências sofridas ao longo dos séculos. Nesse caldeirão, além da poesia inspirada no entorno, encontram-se pitadas caribenhas e heranças africanas. E para quebrar o paradigma de quem olha a cultura amazônica de longe, vale esclarecer que a música do Norte não está essencialmente atrelada à sonoridade indígena.

Símbolo dessa retomada das raízes nortistas, o Estado do Pará vive uma efervescência musical, gerando novos nomes para o cenário nacional, aos moldes do que aconteceu em Pernambuco com o mangue beat. Mas essa similaridade não faz do Pará a “nova Recife”. Ao contrário do movimento de Chico Science, o processo criativo em foco no Pará não está vinculado a questões sociopolíticas. A música do Norte canta suas raízes e dialoga com sonoridades e idéias do mundo, e ponto final. Pelo menos é assim que alguns dos principais expoentes dessa movimentação enxergam o momento. “O mangue beat foi muito importante para o Recife, mas não impôs um modelo. O que acontece no Pará e no Norte como um todo é uma atuação muito espontânea que não tem conotação política”, reflete o músico Marco André.

Cantor, compositor e arranjador paraense, Marco André representa essa mistura da tradição amazônica com a modernidade global e recebeu por isso o Prêmio Tim de Melhor Cantor Regional (2005), além de ter integrado a lista dos dez melhores discos de world music do mundo em 2004, publicada pela revista européia Folk Roots Magazine. A música de Marco André utiliza o recurso eletrônico para unificar sons de instrumentos, como a guitarra e o teclado, a percussões características do universo amazônico, como o curimbó, a barrica, a matraca e as caixas de marabaixo e de marambiré. “O Norte tem uma pluralidade de ritmos que vêm sendo experimentados por artistas como o Pavulagem, que chega a levar dez mil pessoas para as ruas ao som do boi; e Coletivo Rádio Cipó, conhecido por suas pesquisas sonoras”, afirma o músico.
A influência dos Mestres
Talvez um dos maiores ícones do carimbó, ritmo afro-indígena relacionado à costa atlântica do Pará e à Ilha de Marajó, Augusto Gomes Rodrigues, o Mestre Verequete, nasceu no município de Bragança, no Pará, em um vilarejo conhecido pela alcunha de Careca. Como tantos outros brasileiros do interior, Verequete deixou sua cidade natal ainda pequeno, em companhia do pai, para tentar a vida na capital. Trabalhou como ajudante de capataz, açougueiro e marchante de porco, entre outros bicos. Durante todo esse tempo acumulou experiências que podem ser ouvidas em suas músicas, “pontos” cantados ao som do grupo Uirapuru, uma formação clássica de carimbó fundada por ele.
Com quatorze discos gravados, aos noventa anos o poeta e compositor foi retratado por Luiz Arnaldo Campos e Rogério Parreira no curta-metragem Chama Verequete, que recebeu prêmios nos Festivais de Belém, Curitiba, Florianópolis e Gramado, no qual levou o Kikito de Melhor Música de 2001 pela trilha assinada pelo próprio Verequete. Como diz o Mestre em uma de suas composições “o carimbó não morreu/está de volta outra vez/o carimbó nunca morre/quem canta o carimbó sou eu”.
Originalmente chamada de lambada, a guitarrada é um caso de revitalização que merece destaque. O ritmo, que nada tem a ver com a lambada difundida em meados dos anos 80, remonta a um tempo em que a região amazônica só conseguia captar o sinal de rádios do entorno, assimilando a cultura caribenha. O nome guitarrada veio bem depois, como uma derivação das palavras guitarra e lambada, criada para fazer jus ao som original.

Importante elo de ligação entre os mestres da guitarrada e o novo século, o músico Pio Lobato escutou a lambada instrumental de Mestre Vieira pela primeira vez aos 15 anos, durante um programa de TV. Anos depois, então estudante do curso de Educação Artística da Universidade Federal do Pará, Pio foi o responsável por trazer à tona os mestres Vieira, Aldo Sena e Curica, que haviam caído em esquecimento, e por reuni-los pela primeira vez no mesmo palco. Sua pesquisa sobre o tema, desenvolvida para o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), acabou dando origem ao grupo Cravo Carbono, que faz uma releitura da guitarrada, acrescentando rock e poesia.

Na seqüência do Cravo Carbono surgiram outras bandas, como o La Pupuña, de Adriano Sousa (bateria), Marcio Goés (baixo), Diego Muralha (guitarra), Luiz Félix (guitarra e percussão), Rodolfo Santana (teclado) e Ytanaã Figueiredo (voz e percussão). O trabalho do grupo segue uma linha mais pop e costuma ser denominado de “surf music da pororoca”. Mistura à guitarrada elementos como o rock, o merengue, o brega, o surf music e a quadrilha. “A guitarrada é uma música instrumental com sotaque paraense, embora hoje a letra seja agregada à melodia, que se diferencia, justamente, por se basear na guitarra, instrumento que tem uma simbologia muito forte”, revela o guitarrista e percussionista Luiz Félix. No ano em que se comemoram os 30 anos do disco Lambada das Quebradas, do Mestre Vieira, o La Pupuña lança seu primeiro álbum, All Right Penoso (Ná Records), mostrando que é possível rejuvenescer a cultura sem deixar de lado as raízes.

Processador rítmico

A consolidação de uma vocação musical, o sucesso e o despontar de músicos paraenses em todo o Brasil são o resultado de séculos de influências musicais e da união de etnias e culturas diversas.

Parte da estratégia do Marquês de Pombal para colonizar o território amazônico, a criação da Companhia Geral de Comércio do Grão Pará e Maranhão, em 1755, deu início à importação massiva de escravos africanos, que substituiriam a mão-de-obra indígena utilizada até então. Estima-se que nos primeiros vinte anos, aproximadamente 15 mil escravos africanos tenham desembarcado no porto de Belém, marcando substancialmente a cultura amazônica.
A reunião das culturas indígena, africana e européia liquidificadas com as influências caribenhas resultaram na identidade cultural do Pará, também reconhecida por sua musicalidade peculiar, ramificada em ritmos diferentes. O batuque de negros e índios, calado por um longo tempo por proibições sociopolíticas, ressoa hoje reinventado e remixado por uma geração que revisita suas origens para criar sons universais.

*matéria publicada no Boletim Natura Musical em 2007

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