terça-feira, junho 27, 2006

Estranhezas


Experiência de uma carioca no mundo rock paulista.

Tinha tempos que eu não saia sozinha para ouvir rock, aliás, a minha veia mundana anda resguardada. Digamos, que dar asas ao mundanismo não é pra qualquer um e eu me conheço - melhor deixar quieto. Fui no Hangar ver a banda de um amigo de trabalho e me diverti a valer. Tudo muito estranho e familiar. Preto, muito preto. Cerveja, muita cerveja. Meninotas e moleques encapotados. E, eu, uma trintona com cara de menininha, disfarçada entre a rapaziada - me pediram até o RG n hora de comprar uma breja. A música, pesada e de primeira linha. Só ouvir e deixar fluir... Você aprende isso com o tempo. Ouvir e observar. Viajar sem ajuda de aditivos. Nada que uma latinha de cerveja não resolva. Tenho outros interesses agora.
Cheguei em casa cedo, a tempo de tomar uma sopa com a minha minifamília. Rock'n roll aqui é matinê. Ninguém tem tempo nem para enfiar o pé na jaca. Hard São Paulo.

sexta-feira, junho 16, 2006

Road story


A Sereia Vermelha, de Maurice G. Dantec

Europa, 1993. Enquanto um conselho estabelece as fronteiras e detalhes para a unificação do continente, o então redator publicitário e músico pós-punk Maurice G. Dantec narra o cotidiano de uma Europa globalizada econômica e socialmente em seu romance de estréia A Sereia Vermelha. Considerado um cult da literatura noir francesa, o livro mostra um clímax de violência urbana, típico de países subdesenvolvidos, instalado no berço da civilização.
E ninguém está livre de perseguições, de preconceitos, de assassinatos e de raptos no romance de Dantec. De origens raciais diversas, os personagens convivem com o perigo iminente da violência a cada linha do texto, como espectros do mundo contemporâneo. Cada um cumprindo uma função. A adolescente modelo criada num dos países mais modernos do mundo, a Holanda, é vítima de sua própria mãe, uma legítima representante da elite financeira global. A preceptora, uma asiática estudante de ciências físicas, é assassinada por ter desejado algo mais que o cargo de empregada. O herói, ou anti-herói, francês, um mercenário politizado adepto do fazer justiça com as próprias mãos. A policial holandesa que luta contra a corrupção enquanto busca se encontrar como mulher. O marinheiro inglês, vítima das drogas, que tenta se redimir como pai. O policial corrupto vindo da África do Sul, onde era pago para fazer o serviço sujo. Enfim, uma sucessão de clichês marcados pela formatação do mercado editorial de romances policiais: tudo regado a muito sangue, tiros, perseguições e viagens espetaculares.
Determinações editoriais à parte, o enredo conta a história de Alice, uma adolescente muito inteligente e amadurecida, que ao encontrar uma fita com imagens de tortura e do assassinato (snuff-movies) de sua professora, descobre que sua mãe é uma espécie de vampira moderna, contata o comissariado holandês e foge à procura do pai. Ao saber da denúncia de Alice, sua mãe, Eva Kristensen, coloca um verdadeiro exército de elite em seu encalço. Durante a fuga, Alice conhece Hugo, um mercenário envolvido com o contra-poder terrorista que atuava no leste europeu, que resolve ajudá-la a encontrar seu pai. E aí começa a aventura: a menina foge do bandido, que foge da polícia.
E como não poderia deixar de ser, o romance policial traz aparatos militares de última geração. Granadas, fuzis, pistolas, metralhadoras e até mecanismos da alta espionagem ditam o ritmo da narrativa. Sem fazer juízo de valores, Dantec apresenta as armas de uma histeria tecno-militar generalizada, mostrando personagens preparados para enfrentar qualquer guerra, seja pública ou particular.
O que dá a verossimilhança necessária ao enredo é justamente o cenário. Como pano de fundo para o thriller noir, Dantec elegeu as estradas européias. Alice e Hugo saem da Holanda em velocidade máxima, com escala na Alemanha, na França, na Espanha e em Portugal. É no país lusitano, com suas estradinhas estreitas e arborizadas à beira de penhascos, que a aventura termina. Para completar a road story, uma trilha sonora escolhida a dedo. Em momentos de emoções fortes, com volume no máximo, Easy Rider de Jimmy Hendrix; para não acordar os passageiros, Nashville Skyline, de Bob Dylan; e quando o assunto é delicado, qualquer melodia de Miles Davis.
Para apresentar os personagens ao leitor, Dantec apostou na troca de olhares. Uma pequena olhadela é capaz de desvendar cada personalidade. E os que não olham nos olhos determinam a mesma proposição. Com isso, o autor aproveita para criar pausas, fortalecer as características essenciais de cada um e aumentar o clima de suspense, valorizando a narrativa linear. E talvez seja esse formato que torna a leitura fluente e nos faz não descolar os olhos do livro, acompanhando Alice e Hugo pela Europa até o fim da aventura.

quarta-feira, junho 14, 2006

Tatoo, always tatoo

Há dez anos atrás, louca, fiz uma tatuagem na casa de um hippie que vendia artesanato em Mauá. Do tipo descabelado, sequelado de maconha, mas com uma habilidade incrível para o desenho. Um escorpião no ventre que provocou arrepios na minha família, embora minha mãe tenha adorado; e que durante a gravidez cresceu tanto que se tornou ameaçador. Graças a Deus e ao óleo de amêndoas e uréia, o escorpião voltou ao tamanho normal com perfeição. E continua aqui, num local discreto, avistado de passagem entre um movimento e outro. Por que fazer uma tatuagem? De onde vem este desejo tão forte? Não sei. Fetiche, muito fetiche. Prazer de ver o corpo coberto por arte. Delícia de ver a reação alheia - positiva ou negativa - com a descoberta do desenho feito na pele à custa de dor e sangue - o que faz parte do ritual da tatuagem. Isto tudo e uma curiosidade, um fascínio por este mistério ancestral. Além disso, aquela parte do corpo até então quietinha e neutra, ganha vida própria e sobressai. Cores, geometrias, figuras são parte do repertório. Particularmente, prefiro os desenhos de traços finos, em tom preto, bem delineados, femininos e com uma forte simbologia. Gosto de geometria, de mistério e, principalmente, de simplicidade.
Muito tempo se passou entre a tatoo feita aos 19 anos e as duas feitas agora, seguindo a superstição do número ímpar de "rabiscos". Desta vez, o tatuador era um profissional de verdade e, mesmo assim, tive muito medo. Suei frio e percebi que ao longo dos anos minha coragem diminuiu. Segundo a amiga que me acompanhou no dia da tatoo, "isso é coisa de mãe. Você fica mais prudente e é só isso. Afinal, quem pariu faz qualquer coisa". Achei sábio e resolvi acreditar na tese dela, melhor que me achar covarde.

...Tatoo

E eu que achava que seria uma vovó moderna, cheia de tatuagens, percebi no estúdio do tatuador que tatuagem virou moda. Uma patricinha dourada, do tipo modelona, de cabelo escorrido até a bunda e unhas vermelhas compridas desfilava as suas doze tatuagens, enquanto combinava um kanji para celebrar a amizade com a melhor amiga. Outra patricinha, acompanhada pelo pai-médico, acabava de sair da sala com três estrelinhas estampadas na nuca. E um japinha nerd, sentindo-se liberto, bradava que depois de passar pela tatuagem, ele podia tudo, até mesmo terminar um namoro de cinco anos. E a tatoo tem disso mesmo, é mágica. Tem poderes de feitiço e pode transformar. Tão simbólica que, ancestralmente, é praticada nas mais esotéricas religiões, do candomblé aos rituais maoris, celtas, vikings. Uma pintura clandestina e pagã por tantos séculos, em várias sociedades, orientais e ocidentais, que exerce fascínio em alguns e causa medo em outros. E, mesmo com toda esta mania de tatoo, o preconceito ainda existe e a copeira do meu trabalho está aí para provar. Desde que viu o desenho no meu corpo, parou de falar comigo, está me olhando torto e esqueceu quem eu era. Para ela, eu virei outra pessoa, mostrei minha verdadeira face. Paciência! Não fui a primeira e nem serei a última. Neste caso, um viva para as patricinhas que estão ajudando a romper com o preconceito! rsrsrsrs

Certamente, as próximas duas não vão levar outros dez anos. Prazer, compulsão e volúpia estão marcados na minha pele.

segunda-feira, junho 12, 2006

Esposa de vitrine


Um ponto de encontro atípico funciona como elemento de status em São Paulo - e talvez em outras cidades do mundo -, uma clínica pediátrica para as crianças mais abastadas. Mães lindíssimas, com roupas impecáveis e cabelos ultraescovados flanam pelo enorme salão decorado com design de primeira linha para os pequenos. Ao fundo, uma melodia infantil tocada harmoniosamente em tom de vibrafone. Os pequenos anjos choram, querendo o colo de suas mães, mas são obrigados a se contentar com o amparo de babás entediadas, vestidas de branco dos pés à cabeça. Para cada criança, uma babá comandada pela dondoca que se afeta em ares maternais. Elas se encontram no consultório e discutem a vida dos anjinhos, citando com perfeição os sintomas e nomes dos remédios receitados pelo pediatra superstar. Mulheres quase perfeitas, que não fazem nada de suas vidas, mas que vivem com a agenda ocupada por milhares de compromissos de suma importância. O maior deles: burilar a beleza nos melhores salões e spas.
No passado, a esposa ideal para se apresentar aos amigos e à sociedade era aquela que aparentava fragilidade, presa em espartilhos que, de tão desconfortáveis, causavam sérios problemas de coluna e esmagamento do pulmão. Mulheres que se sentiam enfraquecidas e desmaiavam em eventos sociais, legitimando seu pedigree; e que seguiam a etiqueta aristocrática do culto à inutilidade. Séculos depois, parece que a mulher de sociedade, mesmo livre do espartilho, não mudou. Suas amarras são outras, ela é escrava da chapinha, dos saltos, da malhação, dos cremes anti-age, anticelulite, an-ti-tu-do. Ela precisa continuar alimentando sua inutilidade, sua futilidade, embora deva ter assuntos agradáveis para a conversa no lounge com os amigos. Esta mulher precisa frequentar os lugares certos, nas horas certas, para desfilar sua superioridade paga pelo marido orgulhoso desta exposição. Um troféu dourado que mostra o quanto este homem é poderoso e picudo.

Graças a Deus, a história feminina também foi protagonizada por uma minoria batalhadora, que não engrossou o coro ditado pela sociedade de sua época. Salve Leila Diniz que, em plena repressão de costumes, apresentou sua gravidez com orgulho num biquíni de praia e mostrou em entrevista exclusiva para o Pasquim- numa época em que não se ouvia o que as mulheres tinham a dizer - que mulher também é um ser pensante. Salve também os homens que se fascinam com as diferenças entre os sexos e que acham que mulher completa, ao invés de diferir - como a equipe do Pasquim que quis ouvir o que a Leila Diniz tinha a dizer. São esses homens contra a corrente, que acreditam que mulher não é troféu, nem tem que ser frágil para ser feminina, os verdadeiros machos da espécie.

Queridas, me desculpem a franqueza, mas inutilidade não tem nada a ver com erotismo e sedução, pelo menos não para os homens e mulheres da vida real. Se sujar, brincando com uma criança no colo, amparar o bonitinho quando ele está com medo ou doente, é uma experiência sem igual. Fora que transar exige esforço físico, faz suar e descabela. Pelo bem da humanidade, a mulher inútil e intocável deveria existir apenas num panteão.