quinta-feira, maio 20, 2010

tempo e poesia



Obra de crítica literária ou de reflexão histórica? Eis a emboscada que o crítico e poeta mexicano Octavio Paz cria no ensaio A outra voz, ao se valer de elementos da história para estabelecer pontes entre os discursos poéticos do passado, do presente e do futuro. No texto, a dominante, conforme o conceito jakobsoniano, parece ser uma temporalidade que articula história e poesia, na busca por uma delimitação do que seja modernidade. Mas que ninguém se engane, pois escondido sob o véu da conjuntura histórica está uma reflexão sobre a crise da cultura moderna e suas rupturas. Essa busca pelo conceito de moderno, por vezes, acaba por criar uma dicotomia entre história e poesia, sendo a primeira localizada no plano do científico, e a segunda, no campo do fictício, do irreal. O que remonta à própria separação entre mythos e logos, segundo Jean-Pierre Vernant em Mito e sociedade na Grécia antiga, inseparáveis no início dos tempos, mas distanciadas com o advento da escrita, que inauguraria uma nova forma de pensamento, uma espécie de racionalização do real. No entanto, é preciso ter claro que, em sua origem, a palavra história, do grego historiè, sempre esteve ligada ao ato de narrar.

“A palavra grega historiè tem, nesta época e neste contexto, uma significação muito mais ampla: ela remete à palavra histôr, ‘aquele que viu, testemunhou’. O radical comum (v) id está ligado à visão (videre, em latim ver), ao ver e ao saber (oida em grego significa eu vi e também eu sei, pois a visão acarreta o saber). (…) Não há nenhuma restrição a um objeto determinado: a historiè pode pesquisar a tradição dos povos longínquos, as causas das enchentes do Nilo ou as razões de uma derrota military” (GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre história, memória e linguagem. São Paulo: Imago, 1997)

Para Roger Chartier, a caraterística narrativa da história fica evidente no texto Temps et récit, de Paul Ricoeur.

“De fato toda a história, mesmo a menos narrativa, mesmo a mais estrutural, é sempre construída a partir de fórmulas que governam a produção das narrativas. As entidades com que os historiadores lidam (sociedade, classes, mentalidade etc.) são ‘quase personagens’, dotadas implicitamente das propriedades dos heróis singulares ou dos indivíduos ordinários que compõem as coletividades que essas categorias abstratas designam.” (CHATIER, 1994, p.101)


Em A outra voz, Paz busca, nas dobras da história, em seus pontos de tensão, possíveis dados que componham um panorama sobre a poesia na modernidade. Essa linha de raciocínio fica evidente logo no início do capítulo Modernidade e Romantismo, quando o autor situa a poesia do final do século XX como “herdeira dos movimentos poéticos da modernidade, do Romantismo às vanguardas, e sua negação” (p.33).

Nesse sentido, a história funcionaria como uma espécie de memória que aporta subsídios para o entendimento da constituição do poético. Tanto que, na hora de explicar a transitoriedade do vocábulo moderno, o autor se pauta por suas modificações ao longo dos tempos, enumerando possíveis origens, que vão de uma simples periodização (“Renascimento, Reforma e o descobrimento da América), a fatores econômicos (“nascimento dos Estados nacionais, a instituição bancária, o nascimento do capitalismo mercantil e o surgimento da burguesia”), e momentos de transformação do pensamento (“revolução científica e filosófica do sécculo XVIII”). Por fim, reúne as três hipóteses como uma “explicação coerente”, o que já alerta o leitor com relação à procura do autor por uma unidade, seja na história ou na poesia.

Em seu percurso pela decifração do que é modernidade, Paz encontra nos interstícios do conceito o estabelecimento de um pensamento crítico como traço diferencial, sendo este baseado em “métodos de pesquisa, criação e ação”. Idéias como progresso, democracia, ciência, liberdade e técnica são creditadas pelo autor a esta crítica.

Entre os processos definidores da modernidade, o crítico mexicano ressalta o século XVIII como aquele em que a “razão fez a crítica do mundo e de si própria”. O homem passa a pensar sobre si e sobre o coletivo, estabelecendo projetos de reforma social bem como utopias. Para o autor, estas utopias representam uma “outra cara da crítica” (p.36) e, ao mesmo tempo em que atuaram como força motriz de sonhos e ações para a Idade Moderna, foram fontes de “horrores cometidos em seu nome” – visão que pode soar demasiado fatalista.

Paz acredita no zeitgeitz como elemento de identificação da visão do tempo. Dessa forma, cada época seria pautada por uma temporalidade, fruto dos anseios e vivências de sua sociedade. Se a Era Cristã determinou um tempo finito, condicionado a uma promessa de Eternidade, a Modernidade traria a idéia de que a perfeição estaria no futuro e, ainda, neste mundo e não em outro. “Na nossa [época] a presença constante das utopias revolucionárias denuncia o lugar privilegiado que tem o futuro para nós” (p.36).

O que Paz mostra, de forma silenciosa, é que a cada ruptura com o pensamento e as estruturas estabelecidas, o homem trava uma nova relação com o tempo. No Romantismo, por exemplo, temos a crítica da razão crítica; uma trasngressão da modernidade em seu próprio seio, feita por meio da analogia ou da ironia.

Ainda seguindo o rumo da articulação histórica, no capítulo Modernidade e vanguarda, Octavio Paz troca as proposições sobre a modernidade, que regeram o capítulo anterior, por questões mais bem definidas. Para começar, afirma que o século XIX foi o apogeu da modernidade, quando idéias que no século XVIII ainda significavam ameaças a ordem estabelecida – democracia, separação entre Igreja e Estado, liberdade de crenças – “se converteram em princípios compartilhados pelas nações”.

O crítico também classifica a Idade Moderna como “um ciclo que compreende o nascimento, apogeu e a crise da modernidade”. À crise, Paz chama de Idade Contemporânea”, ainda que considere as armadilhas desta denominação.

Para Haroldo de Campos, que compartilhava opiniões com o poeta mexicano, guardadas as devidas ressalvas, a crise das ideologias teria sido de grande importância para a consolidação da modernidade: “uma crise da utopia e a crise da utopia gerou a crise da vanguarda” (MACIEL, Maria Esther. Vôo transverso: poesia, modernidade e fim do século XX. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1999).

Paz diagnostica neste ensaio do final do século XX questões que dariam outra feição à poesia do século XXI, num intercâmbio não explicitado com outros pensadores como Zigmunt Bauman, Jean Baudrillard e Gilles Lipovetsky. Entre os pontos aclarados estão a crise da vida pública; a liquidez de tudo o que se supunha sólido (da matéria cindida em átomos ao esfalecimento da instituição familiar); a releitura da realidade com atributos do imaginário; novos meios de reprodução da realidade; a ruptura com a natureza linear do relato; e o surgimento do espaço-tempo, que nortearia o trabalho de toda uma geração de artistas, com uma nova visão sobre o eu.

Se a arte sofreu mudanças significantivas com as crises do século XX, não é de se espantar que seu interlocutor também tenha se transformado. Com isso, veremos na poesia novos pontos de partida. A paisagem passa a ser urbana e o homem se vê sozinho em meio a uma multidão. Paz acredita que toda a mundança vivida em seu século seja, “por um lado, o resultado natural da revolução estética iniciada pelo Romantismo, sua consequência extrema; por outro lado, foi a mudança final, a mudança das mudanças: com ela acaba uma tradição que começou no Renascimento” (p.46).

Finalmente, em Poesia de convergência, o autor localiza as vozes que avisam sobre a proximidade do fim de uma sociedade. Em um tom beirando o pessimismo, o poeta vai da promessa de futuro feita pela modernidade à sensação coletiva desesperança, de crise de identidade e de descrédito com esse mesmo futuro. No entanto, ressalta que ainda há pulsar na arte, mas que esta terá de se reformular, deixando para trás o culto à mudança e à ruptura que nortearam a idéia moderna. Também não deve se esconder sob a máscara pós-moderna, uma vez que a expressão é equivocada: “uma maneira na verdade ingênua de dizer que somos muito modernos” (p.54). Pior seria utilizar a expressão anglo-americana pós-modernista que se arroga de vanguarda, mesmo tendo sido precedida, 30 anos antes, pelo modernismo, movimento literário ocorrido na América espanhola e Espanha.

Como que antevendo os anos vindouros, marcos de uma história que ele não veria escrita, Paz diagnostica o instante como o tempo do poeta do final do século 20 e a unidade e singularidade da poesia como características que estão além das amarras do tempo, porque feitas de “puro tempo”.
***

E agora que a resenha termina, parece-me ouvir ao longe, uma conversa nublada entre Walter Benjamin e Octavio Paz. Ainda com o pesar dos anos de Guerra, o primeiro lamenta que o narrador não consiga mais narrar, ao passo que o poeta lhe conforta, sugerindo que a narrativa é o próprio tempo.

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