quinta-feira, maio 20, 2010

senhora da convergência


“Os homens terão logo que edificar uma moral, uma Política, uma Erótica e uma Poética do tempo presente. O caminho rumo ao presente passa pelo corpo mas não deve nem pode ser confundido com o hedonismo mecânico e promíscuo das sociedades modernas do Ocidente. O presente é o fruto no qual a vida e a morte se fundem” (PAZ, 1986, p.56)

Em A outra voz, Octavio Paz nomeia a poesia do século XX, de “arte da convergência” (p.57), caracterizada pela “intesecção dos tempos, o ponto de convergência”. A tese de Paz relaciona toda a literatura dos séculos anteriores e ainda aquelas por acontecer, num presente infinito, quase hipnótico e capaz de provocar vertigens. A poesia do século 20, para o escritor seria como a figuração feita por Borges em Biblioteca de Babel, onde o literário se apresenta como um organismo vivo, pulsante, autofágico e pronto a surpreender.

O homem deste século vive uma identidade destroçada, vítima de sua própria existência, desacreditado de Deus ou da Razão, num presente que parece não apontar nenhum rumo ou linha do horizonte. Vive uma fragmentação que, ao contrário da propagada pelos românticos do século 18 como potência para a construção do ser, lhe serve de clausura, levando-o a se perder ainda mais em labirintos.

Neste panorama, o escritor é aquele que reflete o zeitgeist, tomando como bússola e tábua a linguagem. Para Roland Barthes, a linguagem, por meio de seus jogos e capacidade performática, atuaria, justamente, como uma espécie de mola para o desvendamento parcial. A literatura seria, então, chave para o desnudamento desse sujeito contemporâneo, marcado por contradições e por uma busca frustrada de sua essência.

Em consonância com o espírito de seu século, Hilda Hilst traz para sua obra as angústias e questionamentos existenciais que lhe perspassam a alma. Exemplo da “arte da convergência” vaticinada por Paz, o romance A obscena senhora D conjuga os tempos num “agora sem datas” (PAZ, 1986), bem como os gêneros – poesia, drama e prosa.

“A prosa hilstiana pode ser considerada como um texto holístico por não poder ser classificado facilmente em gênero literário algum, pois é uma espécie de gêneros literários: é dramático, com as devidas rubricas seria um monólogo pronto para ir ao palco, é um tipo de poema lírico e também uma narrativa curta que não chega a ser um conto, nem romance ou novela”. (CARVALHO, 1999, p.111)

A fragmentação presente em A obscena senhora D se apresenta como um código cifrado em meio ao “fluxo de consciência” da personagem Hillé e da multiplicidade de vozes que habita seus pensamentos. Esses diálogos não apresentam uma temporalidade linear; existem envoltos nas brumas da memória da personagem que convive com fantasmas em fase de deterioração e já não distingue fatos passados e presentes. A narrativa de Hilst segue o ritmo da mente de Hillé, num monólogo interior obsessivo, que retorna sempre ao fio da primeira pessoa.

Para mostrar a complexidade humana, Hilst lança mão de oposições e contradições, criando uma personagem que, ao mesmo tempo em que “vomita” suas reflexões, numa cadência vertiginosa, se perde entre vozes e cacos de memória; que une sagrado e profano, Eros e Tânatos; que fala do corpo e da mente, de loucura e sanidade; e que conjuga acidez e lirismo.

Consciente de seu deslocamento – “Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar o nome” (HILST, 2001, p.17) – Hillé vive à margem, entocada no vão da escada e tendo por companhia peixes feitos de papelão, efêmeros e opacos, que representam uma vida ilusória e fracassada, denunciada como uma mera imitação – o que nos remete à teoria platônica. Para a crítica Nelly Novaes Coelho o confinamento da personagem ao espaço exíguo da escada seria uma opção; Hillé seria como uma “prisioneira voluntária no vão-de-escada” (COELHO, 1993, p. 220).

Em A obscena senhora D, o deslocamento não habita somente o interior da personagem, ele está materializado também nas palavras. Alijadas de seus lugares tradicionais, as palavras são reconfiguradas, ganham novo peso, novas medidas, como se a autora, nos moldes da poesia cabralina, quisesse chegar às suas raizes.

(…) porisso falo falo, para te exorcizar, porisso trabalho com as palavras, também para me exorcizar a mim, quebram-se os duros do abismo, um nascível irrompe nessa molhadura de fonemas, sílabas, um nascível de luz, ausente de angústia (HILST, p.55)

(…) como se o Outro tivesse tempo para se deter com velhotas frasescas, escolhendo ditados, sabe que se vira no avesso para fazer ribombar com sua fala pomposa os ouvidos do Ausente, e como arremeda modéstia, humildade pobreza até:
eu, Nada, eu nome de Ninguém, eu à procura da luz
numa cegueira silenciosa (HILST, p.77)



Ritmo vertiginoso
Em alguns momentos, a narrativa de Hilst se assemelha, guardadas as devidas proporções, aos filmes de Alfred Hitchcock, seja pelo suspense, pela cadência, pela polifonia, ou pelos movimentos imaginários de câmera.

Em Hilst, cada frase parece conter um ato em suspensão, prestes a acontecer no próximo movimento de câmera. O leitor está quase sempre como em sobressalto, com o coração na boca e resfolegando pelo ritmo alucinado que, aqui, nada mais prefigura do que o próprio ritmo da vida. Em determinado momento, quando Hillé parece sucumbir à loucura, quase podemos ouvir a trilha de Bernard Hermann, criada especialmente para Vertigo (1958) e temos a impressão de que Hillé, sob a névoa de seus fantasmas, quedará tonta assim como o detetive Fergunson, vivido na tela por James Stewart.

Aliás, no que tange a semelhança com Vertigo, a ausência de pontuação em diversos trechos da narrativa hisltiana, assim como a troca de pontos finais por vírgulas e a rejeição às iniciais maiúsculas dão ao texto um fluxo contínuo que lembra as cenas em que James Stewart dirige por longas tomadas, à espreita da personagem de Kim Novak, enquanto busca organizar as peças de um quebra-cabeças psicológico. Ambos partem de pistas aparentemente desconexas a fim de iluminar pontos nevrálgicos da trama, com a diferença de que em A obscena senhora D não existe uma ordem cronológica que possa ajudar a protagonista em sua ação de desvendamento.

buscava nomes, tateava cantos, vincos, nas torçuras, no fundo das calças, nos nós, nos visíveis cotidianos, no ínfimo absurdo, nos mínimos, um dia de luz, o entender de nós todos o destino,
um dia eu vou compreender, Ehud
compreender o quê?
isso de vida e de morte, esses porquês
(HILST, p. 17)



Estrangeiros – experiência existencial

Aqueles que muitas vezes escolhem seu destino de artista porque se sentem diferentes logo aprendem que alimentam sua arte, e sua diferença, ao admitir sua semelhança com todos. O artista se forja no perpétuo retorno ao outro, a meio caminho da beleza, da qual não pode abster-se, e da comunidade, da qual não pode fugir. É por isto que os verdadeiros artistas não menosprezam nada: eles se obrigam a entender em vez de julgar (CAMUS, 1958)

Se é possível identificar semelhanças entre as obras de Hilst e Hitchcock, salta aos olhos as referências a Camus e Kafka. Assim como os escritores europeus, Hilst tem consciência da sociedade enferma da qual faz parte e busca entender essa patologia a partir do transcendente, do grotesco, do ontológico. A filosofia está presente na obra da autora de forma latente, como uma tentativa de conciliar as questões do Eu com as do mundo. Indo além, identificamos diversas correntes de pensamento do século XX no texto da autora.

Encontramos em A obscena Senhora D uma narrativa subjetiva, protagonizada por uma personagem atormentada pela busca do inapreensível que, mesmo em meio à multidão, sente-se sozinha, isolada, estrangeira como o Mersault de Albert Camus. Aqui, a crise do sujeito reflete também a crise da narrativa. A personagem Hillé materializa sua confusão e fragmentação em uma escrita, aparentemente desconexa, que rompe qualquer linearidade, o que está em consonância com a tese de Terry Eagleton de que “a história pós-moderna desconfia de histórias lineares”. A exemplo, de Kierkegaard, Hilst quer alcançar a verdade. Para isso, parte da literatura como única forma de entender a vida e, se quisermos ir à raiz da questão, evoca a literatura como a própria vida.

Engolia o corpo de Deus, devo continuar engolia porque acreditava, mas nem porisso compreendia, olhava o porco-mundo e pensava: Aquele nada tem a ver com isso, Este aqui dentro nada tem a ver com isso, Este, O Luminoso, O Vívido, O Nome, engolia fundo, salivosa lambendo e pedia: que eu possa compreender, só isso. (HILST, p.19).

É na criação literária que a autora experimenta a alteridade. A procura de sentido para a própria vida faz com que esbarre na essência, no que há de comum entre os homens. A esse respeito, o crítico Anatol Rosenfeld escreveu, em artigo de 1970, Hilda Hilst: poeta, narradora, dramaturga:

Há, em Hilda Hilst, uma recusa do outro e, ao mesmo tempo, a vontade de se ‘despejar’ nele, de nele encontrar algo de si mesma, já que sem esta identidade ‘nuclear’ não existiria o diálogo na sua acepção verdadeira. Pelo mesmo motivo chegou à ficção narrativa, depois do desengano — certamente provisório — que lhe causou a atitude cautelosa do teatro profissional (ROSENFELD, 1970).

O estranhamento do outro é um comportamento sintomático do século XX, e presente nos principais textos literários contemporâneos. Os personagens parecem pertencer a uma mesma classe de indivíduos céticos do porvir, cínicos, desconfiados da tradição, oscilando entre crenças pueris e o pessimismo avassalador. E a ação, esta parece encontrar-se na subjetividade.


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