quinta-feira, maio 20, 2010

apenas a gravidade

Puta que pariu, Raquel, o que você está fazendo aí, vai, pula, pula, olho para baixo, uma vontade enorme de ver como é o corpo caindo no sem tempo, sem qualquer preocupação que não seja cair, minhas pernas parecem ter se colado à velha tábua de madeira, a nuca lateja e pesa e a boca seca pede pela água plácida que se encontra abaixo, tudo parece girar e a maldita música do Bernard Hermann, que por tanto tempo me serviu para tirar um sarro do José e seu estúpido medo de altura, agora grudenta, zumbido de labirintite, que me perco, a boca seca, a perna inerte, o corpo oscilando para baixo, seguindo apenas a gravidade, meu corpo em desalinho, meu... pula, pula, ela nunca foi grandes coisas mesmo, uma escrota, se pular que diferença vai fazer, vai, sempre quis ver de perto um corpo caindo que nem em filme de ação, mas você sabia que eles usam bonecos nessas cenas, oh, vê se pula logo que eu tenho uma reunião em 20 minutos e tem um engarrafamento lá fora, ela quer platéia isso sim, não vai pular, duvido, nunca teve vida própria a coitada, não Raquel, sai daí, por que Raquel, as coisas iam tão bem... e minhas pálpebras tremiam furiosamente, como que para alertar o sistema nervoso de que algo não estava correto, que meus pulmões não aguentariam tanta água, que meu corpo gordo e flácido se desfaria, gelatinosamente, como se tivesse sido moldado para aquele momento, pula bolo-fofo, quero ver ela se espatifar, descer na água escura entre bolhas e subir que nem merda.

Agora, aqui em cima, sentada nesta prancha, sem nenhum rumor, apostas, gritos, nenhuma batida ou arfar, julgamentos, agora, quando penso naquela noite em que caí, obedecendo ao ritmo, ao zumbido de Bernard Hermann, aquele como o único movimento possível, a gravidade, a água e o corpo em encontro... passou-se muito tempo até que eu recobrasse a consciência a ponto de me sentar aqui nesta tábua, sem pesar, refazendo os passos até o final, quanta beleza em rever o próprio final, um único instante, tenso, pesado, cantado em nota de barítono alto, mas ao mesmo tempo leve, oco, guardando lá embaixo o aconchego, caroços de romã e, pela primeira vez, o centro.  

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